O que significa subir uma montanha

Lucas Fagundes
6 min readOct 15, 2021

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relato da travessia Marins x Itaguaré

Fundindo céu e terra, as montanhas surgem diante de mim. Sua grande massa é uma referência fixa contra o tempo. Talvez existam pessoas que se sintam desconfortáveis diante de algo tão maior que elas mesmas.

Mas, para mim, há uma força que flui da montanha como uma fonte, uma sensação de imortalidade que faz as dores cotidianas parecerem insignificantes.

Eu me sinto atraído por aquelas formações rochosas e tudo que há em volta delas.

@daniol.cara

Foi nesse contexto que, em julho de 2021, fiz a travessia Marins x Itaguaré, uma aventura de 3 dias e 2 noites atravessando montanhas no coração da Serra da Mantiqueira. Mais do que isso, foi uma jornada de introspecção, fascinação e humildade perante a natureza e superação mental e física.

Embarquei rumo à base do Pico dos Marins numa quinta-feira a tarde, para começar a caminhada sexta de madrugada. Seriam três dias de desligamento total da civilização.

Todo o equipamento preparado e eu não fiquei pensando quão difícil fisicamente ia ser. Eu já sabia que ia ser muito difícil, provavelmente o feito físico mais puxado da minha vida, e isso foi suficiente pra deixar minha mente tranquila.

Eu apenas pensava nas belas paisagens que me aguardavam. Cujo deleite meus olhos almejavam.

Às vezes a gente fica sem palavras pela simples existência de algo diante das nossas vidas. Nesse momento são invocadas as sensações mais profundas, vindas do nosso âmago. Pensa numa sensação de bem-estar do tamanho do céu, infinita e enorme. Estar numa montanha é isso, causa isso.

Sensação de amplitude por estar num lugar transcendental, em conexão direta com a natureza. O espaço em volta de você é infinito.

Mas também é puxado, frio e você vai se sujar. A caminhada é longa, as pernas doem e as noites frias são mal dormidas. E venta praticamente o tempo todo. A montanha é implacável.

Entardecer (@daniol.cara)

Começamos a subida às 9. Começou com trilha fechada por mata atlântica até os Campos de Altitude reinarem. Chegamos no cume do Marins algumas horas antes do sol se por e pudemos explorar todos as faces dos seus 2.420 metros. Assistimos um belo entardecer. Acampamos lá e acordamos antes do sol nascer.

Cinco da manhã

Aguardando o nascer do sol sentado numa pedra, eu conseguia ver, na penumbra, o tapete supremo de nuvens acariciando a encosta da montanha. Logo aqueles vales acinzentados se tornariam verdejantes com a luz do sol.

Enquanto o vento batia no meu rosto, pensei em algumas coisas. Pensei na imensidão do mundo e quão pequenos somos perto de tudo isso. Pensei que, apesar de o mundo parecer estar perdido e apesar do sofrimento da vida, ainda assim continuamos encontrando razões para viver. Por fim, pensei que, aqui de cima, os combinados de lá de baixo estão distantes e pequenos. Minha mente ficou muito relaxada e fui preenchido por uma profunda tranquilidade.

Nesse momento, um gavião-de-cauda-branca pairava sereno alguns metros além, aproveitando as fartas correntes de ar.

Imaginei o gavião falando dentro da minha mente: Lucas, veja a tranquilidade e equilíbrio com que voo e tome como inspiração para a jornada da vida.

Sol presente, hora de retomar a caminhada.

Amanhecer no Pico dos Marins (daniol.cara)
Amanhecer no Pico dos Marins com tapete de nuvens. Pico do Itaguaré em primeiro plano e Serra Fina )

O segundo dia foi o mais puxado. A travessia nos levou para as cristas irregulares que ficam entre os dois picos. Subidas e descidas íngremes, uma atrás da outra. As pernas começavam a sentir a subida e a força ia diminuindo. Desejava o descanso, mas não desanimava. Percebi que estava sorrindo. Respirei e segui em frente e pra cima.

Meio não acreditando estar ali, olhava ao redor. Eu estava na crista da montanha, numa parte da trilha que era cheia de arbustos e arvorezinhas muito verdes, algumas com flores rosas e outras amarelas. Também ventava bastante e os arbustos e bambus chacoalhavam violentamente. Era a natureza em sua máxima exuberância, sempre nos lembrando da sua índole através da aspereza das rochas e do vento constante, e pelas pequenas dádivas de fauna e flora.

Encostas
@daniol.cara

Ao final do segundo dia, depois de bastante esforço, ainda estava claro quando chegamos no local de acampamento, uma pequena abertura da vegetação com vista para o Pico do Itaguaré.

Admito que tive dificuldade para acreditar nos meus olhos. Diante de mim, crescia o Itaguaré, a pedra rachada, uma rocha gigantesca que parece a barbatana de uma criatura colossal.

A última luz do dia trouxe um espetáculo aéreo dos andorinhões, que voavam em mergulhos em bandos de mais de trinta.

Pico do Itaguaré (@daniol.cara)

O momento de descansar após um dia cansativo é especialmente agradável. Preparar a janta com calma e observar o dia virar noite na montanha é uma experiência única. A mente se acalma assim como a luz do dia é coberta pelo manto silencioso da noite.

No dia seguinte, o último, iríamos subir o cume do Itaguaré.

A segunda noite não foi fria nem ventosa como a anterior. Acordei com uma sensação de foco e determinação que não tinha experimentado ainda. Eu pensava: o cume do Itaguaré está lá e nós vamos subir. Assim começava o último dia da travessia.

O caminho até lá passa pelas entranhas da montanha, embaixo e por dentro de pedras do tamanho de prédios.

O cume do Itaguaré em si é uma pedra que cabem umas cinco pessoas. Chegar até ele exige uma dose de coragem e outra de calma. É a hora de confiar nas pernas e nos braços e ter foco. O resultado é a sensação épica de estar no cume daquele monumento da natureza, sentimento que eu não consigo descrever com palavras e nem vou tentar.

Ali eu estava no ponto culminante da jornada.

Diante de mim, o mundo.

Há uma vastidão etérea e silenciosa. Eu consigo sentir as vibrações do planeta como batidas do coração de um titã adormecido, como se eu estivesse apoiado nos próprios ossos da terra.

Vista do cume do Itaguaré (@daniol.cara)

Chegou a hora de descer, e esse retorno tem um sentimento de alívio porque o descanso está próximo.

Conforme caminhávamos de volta, senti uma coisa e percebi que isso agora faz parte de mim. Tranquilidade com uma leveza quase sedativa e reverência pela natureza. Pensamentos negativos se diluíam e as adversidades pareciam mais fáceis de resolver.

Hoje, enquanto escrevo esse texto, com um pouco de concentração eu fecho os olhos e acesso essa sensação.

Recomendo que vocês subam pelo menos uma montanha por ano. Para enxergar o mundo de onde a natureza é inabalável. Subir o cume de uma montanha para acessar partes profundas e inspiradoras dos nossos seres. Ou ainda pelo prazer da superação física.

Obrigados:

ao mestre Michel pela amizade e por nos guiar na montanha

ao Daniel e ao João pela companhia nas jornadas e pelas fotos extraordinárias

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